domingo, 28 de agosto de 2011

É possível viver sem Governos Civis? É, mas não será a mesma coisa



Na primeira entrevista após a extinção do cargo, aquele que foi o último governador civil do distrito de Coimbra e o que mais tempo esteve em funções, desde o 25 de Abril, admite que, em democracia, só o Parlamento, o Governo e os tribunais e os juízes são indispensáveis. Mas reconhece que os Governos Civis vão fazer falta, enquanto mediadores institucionais e governo de proximidade. Quanto à mudança de procedimentos, graceja com uma anedota: nos países em ditadura, a operação mais difícil era a de arrancar um dente. É que, sendo proibido abrir a boca, a extração fazia-se pelo nariz…

Continua a considerar indispensáveis os governos civis?

Nenhuma instituição, em democracia, é indispensável, para além das que constituem os seus pilares básicos. A Assembleia da República, mesmo assim reconfigurável; o Governo, demonstradamente reconfigurável; tribunais e juízes independentes, a precisarem também de reconfiguração. Depois, evidentemente, o poder local, que é outro pilar da legitimidade democrática, mais próxima dos cidadãos. Também ele está a precisar de reconfiguração, o que, aliás, parece ser consensual.

São, então, dispensáveis?

Por tudo o que referi e porque o atual governo, legitimado pelo voto, assim o decidiu, os governadores e os Governos Civis não farão parte da estrutura fundamental da democracia. Enfim, como diz a publicidade, pode-se viver sem eles, mas não será a mesma coisa.

Porquê?

Porque eram a mediação institucional de um governo de proximidade – enquanto, naturalmente, as regiões em concreto e os seus eleitos não preencherem este espaço. Porque ligavam os poderes legítimos locais e a administração desconcentrada do Estado, quer entre si, na resolução de problemas, quer com a Administração Central, sobretudo o Governo. Pois, o PSD prescindiu desta almofada, deste verdadeiro governo de proximidade. Tem toda a legitimidade para o fazer, embora me pareça que fez mal e de forma atabalhoada. Veremos.

Sai com a sensação de dever cumprido?

Cessei, com o Governo que representei, as minhas funções políticas, absolutamente com o sentimento do dever cumprido. Mas, sendo a democracia regida pelo princípio do contraditório, esta é a minha opinião, alicerçada em factos e episódios. Outra opinião teve o Governo e tem a legitimidade para agir como agiu. Só desejo que possa dizer o mesmo quando cessar funções. Porque não pode falhar na sua missão. Se falhar, falhamos todos! E uma forma de começar a falhar é querer mais do que está acordado. Não pode por isso falhar… por exagero.

O que motivou reações tão agrestes de alguns governadores?

Quando o Governo anterior cessou funções, todos esperávamos apenas a habitual substituição. Eis senão quando eu e os meus pares somos confrontados com o anúncio de uma não nomeação, que colocava problemas de ordem funcional, já que os políticos, esses, estavam resolvidos de per si. E foi isso que motivou, estou em crer, a reação mais intensa de alguns dos meus colegas.

O que falhou, então, no processo?

Penso que não se teve em conta as funções insubstituíveis dos governadores civis e não se cuidou de as transferir adequadamente para quem pudesse assumi-las; depois, não se considerou entidades e instituições de que os governos civis eram peças centrais ou elos de ligação institucional.

Foi uma decisão precipitada?

Foi, sobretudo, um começo desajeitado, para tentar marcar a agenda mediática, o que acabou por ser conseguido pela negativa.

Em que medida?

Olhe, por exemplo, logo na segunda-feira em que foi anunciada a exoneração dos governadores civis, verificou-se indispensável a presença de seus representantes em atos que envolviam uma ou duas estações de televisão nacionais, que, por essa razão se viram impedidas de concretizar a sua atividade. Houve depois diligências do próprio ministro, junto dos Governos Civis, que, com a maior das boas vontades institucionais, para não prejudicar a democracia, se prestaram a criar condições – que ainda não estão reunidas – para substituir dispositivos e encontrar quem decida nos lugares não preenchidos.

Que fica “pendurado” com a extinção?

Ficam por preencher, estou convencido disso, funções de articulação das forças de segurança – todas elas, incluindo a segurança alimentar – que, regularmente reuniam nos governos civis. Também a prevenção rodoviária distrital, a defesa da floresta contra incêndios e o seu plano estratégico. Enfim, uma série de atribuições e competências que, agora, post factum, se estará certamente a procurar corrigir e distribuir por outras entidades. Com as alterações, certamente estará para breve a saída de novas leis orgânicas. Aí veremos como foram resolvidas estas questões.

Que outras questões ficam mal resolvidas?

O contributo para a promoção da igualdade de género, o combate à violência doméstica, a mediação em questões de âmbito educativo e outras foram áreas marcantes da atuação do Governo Civil que, a partir de agora, deixarão as administrações desconcentradas do Estado entregues a si próprias, sem articulação horizontal, no distrito e condenadas” a falarem primeiro com Lisboa e só depois com os seus pares de outras áreas à escala distrital ou regional. Faltará sempre o Governo de proximidade.

A questão da proteção civil é especialmente sensível…

Também aqui ninguém é insubstituível, a não ser certamente os soldados da paz, os agentes que desenvolvem a proteção e o socorro.

Isso significa que está esgotado o trabalho dos governadores civis, na nova orgânica da proteção civil que os governos PS puseram em prática?

Esgotado, não. Lembro que essa nova orgânica precisou de um período de concertação, de aferição e de concretização. Um período em que se associou para aos essenciais corpos de bombeiros e bombeiros voluntários – que são, indiscutivelmente, a coluna vertebral da proteção civil – uma estrutura de organização de meios e de deteção de necessidades (NdR – o SIOPS – Sistema Integrado de Operações de Proteção e Socorro). Este sistema, em particular, precisou de uma ajuda preciosa dos governadores civis, junto quer de autarcas quer dos próprios corpos de bombeiros, a quem foi preciso explicar e motivar para a sua integração no dispositivo. Em Coimbra não foi muito fácil…

Foi um longo e conturbado período…

Foi. Começou em 2006 e prolongou-se até 2009. Mas esta integração foi essencial para o sucesso da nova orgânica. Hoje em dia estou em crer que o Comando Distrital de Operações e Proteção e Socorro e o seu comandante estão em condições de garantir resposta rápida e eficaz, quer de bombeiros profissionais quer sobretudo de voluntários e das associações que os promovem.

Onde é que, então, ainda se mantém indispensável a intervenção do governador civil?

Certamente naquela que começou por ser a minha primeira solicitação, quando regressava, ainda, da tomada de posse, em Lisboa, em 2005. Por telefone, fui confrontado por uma dirigente sindical com a situação crítica de uma empresa em risco de fecho imediato, com despedimento de perto de uma centena de trabalhadores. Com ela e com os responsáveis da empresa arregacei mangas, fomos ao trabalho em Lisboa e Coimbra, nos ministérios das Finanças, da Economia e da Segurança Social e conseguimos, em tempo recorde, uma solução que manteve postos de trabalho, viabilizou a empresa e promoveu o desenvolvimentos. Aliás, nesse Natal, sensibilizou-me particularmente a mensagem de viva voz da dirigente da empresa que me agradeceu a sua viabilização. Hoje, a empresa, Sol Praia, de Arganil, estou em crer que é ainda um exemplo de como a mediação económica e social, à escala distrital pode ser decisiva. Em seis anos, foram dezenas os casos semelhantes que se resolveram por intervenção do Governo Civil, mantendo e ampliando emprego, viabilizando empresas e regulando o sistema económico e social do distrito, sempre com a participação empenhada dos autarcas que aqui saúdo.

Os autarcas com quem manteve relação próxima…

Quase todos os municípios do distrito tiveram, nestes anos, situações em que me senti muito feliz por poder ajudar a encaminhar e resolver. Casos houve em que acompanhei alguns autarcas, que são os autênticos motores do desenvolvimento local, em contactos que me solicitaram e que sempre apoiei, junto de membros do Governo ou até de dirigentes de âmbito regional. Como diria um amigo, professor da Faculdade de Economia, os meandros da decisão, a nível central aparecem muitos vezes como verdadeiros labirintos aos eleitos locais e a ajuda do governador civil permitiu encontrar caminhos e soluções que talvez não surgissem ou certamente demorariam mais.

Como fica a prestação de serviços direto ao cidadão, como passaportes, contra-ordenações rodoviárias, licenciamentos, intervenção em estabelecimentos de diversão noturna, etc.?

Esses serviços estavam sob a tutela de uma muito competente secretária do Governo Civil, diretora de serviço, dra. Helena Marques, em quem deleguei competências. Não obstante, algumas dessas competências são indelegáveis, por implicarem decisões de chefia de 1.º nível da Administração Pública (NdR – equivalente a diretor-geral). Daí que o procedimento que está a ser adotado me lembre aquela anedota que se contava sobre países de ditadura, onde a operação mais difícil era a de extração de um dente. Porquê? Porque, sendo proibido abrir a boca, a extração se fazia pelo nariz… Este processo dos Governos Civis recorda-me esta anedota, sem ir, claro está, ao ponto de classificar o procedimento de anedótico.

Voltando à prestação dos serviços…

Estou certo de que a dra. Helena Marques continua a fazer bem o trabalho de prestação direta de diversíssimos serviços. Agora, muitos destes serviços poderão transitar para outras entidades. Não será, mais uma vez, a mesma coisa, mas os cidadãos não sairão prejudicados por isso. Espero que o Governo tenha consciência, também, de que algumas leis vai ser preciso alterar, incluindo a própria Lei Fundamental, para levar a bom termo esta trapalhada da extinção dos Governos Civis.

Admite, porém, que se poupa dinheiro?

Naturalmente que se terá poupado algum dinheiro, com a supressão dos gabinetes e do próprio governador. Mas há que ver quanto dinheiro a mais se vai gastar nas áreas em que não haverá intervenção preventiva e apenas se gastará na correção e no tratamento, da prevenção rodoviária até à falência de empresas que, sem ajuda, criarão mais desemprego, em vez de criarem riqueza.

O cidadão e o socialista

Qual o papel reservado ao PS de António José Seguro?

O PS será, quando necessário, alternativa. O já novo líder António José Seguro não apenas reuniu o PS como lhe imprimiu um novo ritmo. O congresso mostrará à evidência que os militantes e dirigentes estão conscientes das dificuldades que vivemos e assumem o caminho para começarmos a sair desta terrível crise internacional e nacional. Mas sem impor mais crise à crise. Recusando o “stacanovismo político” do atual governo, que parece sempre tentado a ir mais longe nas medidas acordadas e já de si tão duras e difíceis para todos nós… Em suma, é preciso não matar a esperança. E isso o PS sabe-o bem, porque sempre foi o partido da esperança, antes e após o 25 de Abril.

Como avalia a evolução da vida do PS distrital?

Não apresento, em público, questões do PS que não sejam indispensáveis dar a conhecer, segundo o princípio da transparência e da pública prestação de contas. No entanto, quero acreditar que, depois das conturbadas eleições federativas, o PS distrital saberá ultrapassar, sem esquecer para não repetir, aquilo que teria sido um autêntico caso de polícia se fosse levado às suas últimas consequências… Com iniciativas e cumplicidades pacóvias de “aprendizes de feiticeiro” em Lisboa e no distrito, que só desiludiram e enojaram militantes de Coimbra. Como tudo na vida, o período de nojo também passará. E o PS distrital vai saber ganhar os desafios, autárquicos e legislativos, que terá pela frente.

O que vai fazer o cidadão Henrique Fernandes?

Pela primeira vez, desde há muitos anos, o cidadão Henrique Fernandes assumiu não participar, para além do seu voto, no processo eleitoral quer distrital quer nacional. Importa abrir caminho aos que têm de se formar como geração de futuro, no PS. Isso não exclui os mais antigos, naturalmente. Acontece apenas que quero cumprir agora, durante alguns meses, o meu compromisso académico, recorrentemente retomado, que é o de concluir um doutoramento que foi interrompido, por razões autárquicas, há mais de 20 anos. É tempo de temperar a prática e até, quiçá, reexaminá-la, à luz da teoria que não é afinal mais do que o condensado de outras práticas. Com elas me vou haver nos próximos meses, ampliando a minha massa crítica em dois eixos: preparando-me para ajudar, no futuro, a desenvolver o espírito de risco, controlado e bem gerido, que o quotidiano empresarial mas também social nos solicita em permanência. Depois, voltarei a uma vida cívica mais intensa, espero que num outro patamar de vida do PS distrital, porque estou certo que, com António José Seguro e o atual PS, esse patamar será alcançado a nível nacional. Tudo isto sem esquecer que a nossa família não pode nem deve ser repetidamente prejudicada pelas ausências e menos atenção dos que como nós abraçaram a causa pública como primeira dedicação.

Fonte: Beiras.pt