terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Um herói unânime


Francisco Belo, bombeiro dos Municipais do Funchal, é descrito como um homem excepcional, sempre pronto a ajudar os outros e protagonista de salvamentos míticos. Morreu ao tentar salvar uma vizinha da enxurrada.

A morte tende a engrandecer as vidas banais, mas a de Francisco Belo, perdida anteontem, aos 48 anos, numa derradeira tentativa de salvar uma vizinha das enxurradas que enojaram a Madeira, não carecia de tal destino para ser já excepcional, garantem colegas, amigos e família. E, do vero luto a que foram obrigados pela tempestade de sábado, constroem uma narrativa biográfica pontuada do necessário para tornar um bombeiro e homem de família numa memória tão heróica como lendária.

A homenagem que vai receber dos Bombeiros Municipais do Funchal é escassa para diluir as lágrimas que enchem os recônditos íngremes onde morava, na Corujeira de Dentro, freguesia do Monte, e onde já só é possível chegar a pé pela estrada desfeita.

Para a família, congregada em torno da dor comum na casa da irmã Idalina, a mais velha de sete irmãos, a homenagem é bonita, mas incapaz de fazer jus a um indivíduo cheio de superlativos. "Ele era 'o especial' da casa", afirma. "Quando era miúdo, a gente tratava-o por 'engenheiro', porque era diferente dos outros: estava sempre a inventar brinquedos e nunca, mas nunca se chateava com ninguém e ajudava sempre todos", garante a senhora que o embalou em menino.

Mais do que a faceta criativa, vingou a dimensão altruísta de Francisco. Que foi a sua perdição. "A gente estava no quarto, fomos à janela e vimos aquela água toda a cair e a vizinha em dificuldades, e ele disse logo: 'Só me vou calçar e vou já ajudar'", recorda a mulher, Natália, 45 anos e luto rigoroso. E Francisco foi. Para não mais voltar. "Dali a pouco ouvi as irmãs dele a gritar que se ia também na enxurrada. E, quando cheguei cá fora, já não o vi mais". Apanhado por um tronco que as águas arrastaram, foi esmagado por ele dentro de uma garagem em construção dezenas de metros mais abaixo. Ficou desfeito.

E, à invocação desse instante funesto, Natália desfaz-se mais ainda em lágrimas, temperadas todavia por melhores recordações. "Era um bom marido, um bom pai - deixou um filho de 21 anos e uma menina de dez, a sua 'princesinha' -, e um grande homem", garante ela. Casada há 25 anos, tantos quantos era bombeiro o seu Francisco, não nutria ciúmes nem recriminava a bigamia do marido: "Adorava a profissão. Se estivéssemos na cama e o chamassem, deixava-me logo e saía a correr", afirma. Apesar de ter sofridos dois ataques cardíacos, "nunca lhe passou pela cabeça deixar a profissão".

E, no seu orgulho justificado, ilustra a carreira de Francisco com episódio já mítico na corporação: "Um dia, foram chamados a apagar um fogo numa casa. Pensava-se que estava lá dentro uma criança, mas aquilo era só lume e ninguém se atrevia a entrar", conta, ensaiando sorriso tíbio.

"Ele ofereceu-se. Entrou, chamou pela criança e nada. Então viu uma Nossa Senhora de Fátima numa mesa e pensou que a criança poderia ter-se escondido debaixo dela. Quando levantou a santa, gritaram de lá de fora que a criança já estava salva e a mesa desfez-se em mil pedaços", assegura. "Os colegas deixaram-no ficar com a santa, por acharem que tinha sido um milagre e era ele que a merecia pela coragem que teve", diz. "Está lá em casa". Fracisco já não - vai a sepultar hoje, pelas 14 horas, no cemitério do Monte onde nasceu.

Fonte: JN