Os bombeiros da Covilhã têm um grupo de salvamentos que usa esquis e macas-trenó. Flávio Martins comanda a Brigada de Montanha, que tem de lidar com um tipo muito especial de turistas. Segunda de uma série de cinco reportagens sobre os heróis da serra da Estrela.
Em frente ao jipe Land Rover do Grupo de Resgate, o comandante Flávio partilha com os companheiros cálculos e raciocínios. "Geralmente, uma pessoa não se afasta mais de 100 ou 150 metros." Um dos bombeiros acrescenta: "A senhora saiu com o cão e um balde para apanhar cogumelos." Flávio olha para ele:
"O cão é que torna isto estranho. Mesmo que ela tenha morrido de hipotermia, um cão aguenta muito mais."
"Levava um cão rafeiro de 15 quilos, e um balde vermelho", precisa um.
"A filha não sabe em que dia exactamente ela desapareceu", diz outro. "Domingo foi vista a almoçar. O jantar, foram levar-lho, mas ela já não o comeu." O que significa que a mulher pode estar desaparecida há quatro dias. Vive sozinha, tem mais de 70 anos e Alzheimer.
Já foram efectuadas várias buscas, sem resultados. O comandante Flávio decidiu agora mobilizar outros recursos. Aqui, junto à estrada da Atalaia de Teixoso, logo a seguir a Canhoso, nos arredores da Covilhã, estacionam os veículos da GNR e de várias corporações de bombeiros. Ao todo, 58 pessoas. O terreno está a ser batido por jipes, moto-4 e agentes apeados. Uma malha de cinco metros entre cada homem.
"Em montanha, a busca faz-se sempre a descer", explica Flávio. "Estacionam-se os carros num ponto superior, e avança-se para baixo, porque é mais fácil e menos cansativo." Da parte da tarde, a operação vai ser mais minuciosa. O terreno será verificado palmo a palmo. Declives, fossas, zonas de arbustos e de rochas, o ribeiro.
Bruno Bonifácio, 29 anos, um dos elementos da Brigada de Montanha, abre a porta traseira do Land Rover. Uma estrutura com gavetas guarda toda a espécie de material de alpinismo. Outra área da caixa do jipe está reservada para os esquis, a maca-trenó e outro equipamento de neve. O veículo não tem qualquer semelhança com um carro de bombeiros normal. Os seus tripulantes também não são bombeiros normais. Tal como não são normais as situações que enfrentam.
"Uma vez, há quatro anos, um casal ia a andar e ele caiu num buraco. Estavam 17 graus negativos.Estava a nevar, escureceu, levantou-se um nevoeiro denso, não havia maneira de os tirar dali", conta Bruno. "Nós conseguimos chegar lá, enterrados na neve até à cintura."
Filipe Batista, também com 29 anos, o bombeiro mais graduado da Brigada de Montanha, recorda episódios em que as condições meteorológicas eram extremas, incomparáveis com o que acontece em qualquer outro ponto do país. "Uma vez encontrei um grupo, naquela estrada íngreme da Torre, que não era capaz de achar o caminho de volta. O nevoeiro era tão denso que me perguntaram: "Para que lado fica a Torre?" Não conseguiam perceber se iam a subir ou a descer."
Para poder actuar neste tipo de situações, Bruno, Filipe e os outros elementos da Brigada servem-se de equipamento específico, como esquis, alguns com pele de foca na base, para os percursos ascendentes, uma moto de neve, uma maca-trenó, que é rebocada pela moto, uma ambulância todo-o-terreno e diverso material de escalada. Além disso, frequentaram cursos especiais, com actualizações de três em três anos, de actuação em montanha, de escalada, de esqui, para além dos de Técnico de Emergência Pré-hospitalar e de Tripulante de Ambulância de Socorro.
Não é qualquer um que pode entrar para a Brigada de Montanha. São escolhidos de acordo com os seus conhecimentos, perícia e capacidades atléticas. Dos 13 elementos desta espécie de grupo de operações especiais de salvamento, 11 são homens na casa dos 20 anos,um é do sexo feminino e outro... tem 64 anos. Este último, porém, é o mais apto de todos. Foi ele que criou a Brigada e é ele que a comanda. Não há nenhuma operação em que não esteja presente. Trabalha dez horas por dia, não conhece fins-de-semana nem feriados. Está nos bombeiros desde os 14 anos, faz esqui desde os sete.
Antes de se dedicar a tempo inteiro à Associação dos Bombeiros Voluntários da Covilhã e à sua Brigada de Montanha, Flávio Martins foi professor de Educação Física. Especializou-se em desportos de montanha, embora nunca tenha conseguido introduzir essas modalidades nos cursos do ensino secundário. Foi membro do Clube Nacional de Montanhismo e foi com os grupos de esquiadores do clube, na Covilhã, que começou a ajudar os bombeiros nas operações de salvamento. Alcançavam os lugares mais inacessíveis, improvisavam macas e padiolas com os esquis, amarrados com cordas."Quando havia problemas com os esquiadores e os turistas, os bombeiros quase nunca conseguiam fazer nada, porque eram incapazes de chegar aos locais. Nós colaborávamos com eles." Os bombeiros, treinados na Escola Nacional de Bombeiros, em Sintra, não sabiam esquiar, nem enfrentar situações próprias de um ambiente de montanha, inexistentes no resto do país.
O primeiro par de esquis
Flávio tinha começado a esquiar muito cedo, numa época em que a actividade não era comum na região. Apesar de a natureza ser, aqui, muito diferente da do resto do território nacional, nunca houve na serra da Estrela uma tradição de desportos da neve. O que os autóctones conhecem é a pastorícia, não as pistas de esqui. Os senhores da serra sempre foram os pastores, que usam cajado, capote, cobertor de papa e botas nos pés, não esquis nem raquetes.
Flávio aprendeu a esquiar aos sete anos, com amigos mais velhos, alguns estrangeiros que já para cá vinham praticar desportos de Inverno. Comprou nessa altura um par de esquis em segunda mão, por 200 escudos, que pagou a prestações de 20 escudos por mês. Eram uns esquis de dois metros, de madeira pesada, fabricados por alguém da região, nada adequados aos pés de uma criança, e com os quais não era nada fácil dar as curvas. Mas Flávio foi aprendendo, criou um espírito de atleta, nunca fumou nem bebeu, e chegou a ganhar vários campeonatos em modalidades de montanha, em Portugal, Espanha e Andorra.
Quando entrou para os bombeiros, era o único que sabia esquiar. E continuou a ser nos anos seguintes, em que viajou para vários países, onde conheceu estâncias de montanha e estudou os dispositivos de segurança e técnicas de salvamento. Na serra da Estrela, entretanto, a prática do esqui e o turismo de montanha tornavam-se cada vez mais populares.
Em 1993, Flávio achou que só havia uma coisa a fazer: ensinar os bombeiros a esquiar. Enfrentou muitas resistências, de mentalidade e de burocracia, mas logrou criar a Brigada de Montanha, e formar os seus elementos. "Hoje, há seis indivíduos que descem comigo a todos os lugares", diz ele. Os outros ambicionam conseguir o mesmo. Há resgatadores, manobradores, "mas todos são capazes de fazer tudo, se for preciso".
No Verão, o grupo passa muitos dias a treinar, nas zonas mais baixas da serra. Mas no Inverno estão quase sempre na Torre. "O facto de estarmos lá dá segurança às pessoas", explica Flávio. E há sempre que fazer. "Quando há neve e vêm turistas, aos fins-de-semana, há sempre acidentes." Os acidentes normais das estâncias de Inverno, e outros, que são pouco comuns na Serra Nevada ou nos Alpes.
A ignorância dos turistas
"A maior parte dos acidentes ocorre com os trenós e os sacos de plástico", diz Flávio. Na sua maioria, os turistas da serra da Estrela não são propriamente esquiadores experientes. "Muitos não têm a noção." Quando deslizam de trenó ou saco de plástico, "andam de qualquer maneira, usam os calcanhares para travar, fazem fracturas do menisco ou na zona da articulação tibiotársica".
Nos Alpes, os acidentes são provocados pelas irregularidades das pistas, que os esquiadores percorrem a altas velocidades. Na serra da Estrela os socorristas tiveram de desenvolver uma especialidade que deriva da ignorância dos turistas.
"Nos Alpes, as pistas são fechadas e têm os seus próprios pisteiros, a quem as pessoas obedecem, não saindo dos recintos marcados", conta Flávio. "Aqui não. Os turistas fazem o que querem. Não respeitam as nossas advertências. Andam por todo o lado. Por isso é muito fácil perderem-se. Se lhes digo alguma coisa, respondem: "Eu vim para aqui para me divertir. A vida é minha, faço o que quiser." E gostam de se aventurar. Somos um povo de aventureiros."Não é fácil tomar conta desta espécie particular de turistas de Inverno. "A neve só é igual na cor", explica Flávio, que conhece os vários tipos de neve, as suas características e perigos, e as formas de lidar com ela. "Há a neve-pó, muito leve, em que se faz esqui enterrado até à cintura. Há a neve gelada, formada por grossos cristais, que forma uma placa dura de gelo. Há a neve da Primavera, que entra em estado de fusão, e onde só se pode esquiar até às 11 horas da manhã." Tudo coisas que a generalidade dos turistas não sabe. Mas os elementos da Brigada de Montanha dos bombeiros têm de saber.
"Não foi fácil explicar aos responsáveis que temos de estar adaptados ao meio ambiente", diz Flávio Martins. "Tal como no deserto se anda de camelo, o meio de locomoção específico na neve são os esquis."
Fonte: Público
Em frente ao jipe Land Rover do Grupo de Resgate, o comandante Flávio partilha com os companheiros cálculos e raciocínios. "Geralmente, uma pessoa não se afasta mais de 100 ou 150 metros." Um dos bombeiros acrescenta: "A senhora saiu com o cão e um balde para apanhar cogumelos." Flávio olha para ele:
"O cão é que torna isto estranho. Mesmo que ela tenha morrido de hipotermia, um cão aguenta muito mais."
"Levava um cão rafeiro de 15 quilos, e um balde vermelho", precisa um.
"A filha não sabe em que dia exactamente ela desapareceu", diz outro. "Domingo foi vista a almoçar. O jantar, foram levar-lho, mas ela já não o comeu." O que significa que a mulher pode estar desaparecida há quatro dias. Vive sozinha, tem mais de 70 anos e Alzheimer.
Já foram efectuadas várias buscas, sem resultados. O comandante Flávio decidiu agora mobilizar outros recursos. Aqui, junto à estrada da Atalaia de Teixoso, logo a seguir a Canhoso, nos arredores da Covilhã, estacionam os veículos da GNR e de várias corporações de bombeiros. Ao todo, 58 pessoas. O terreno está a ser batido por jipes, moto-4 e agentes apeados. Uma malha de cinco metros entre cada homem.
"Em montanha, a busca faz-se sempre a descer", explica Flávio. "Estacionam-se os carros num ponto superior, e avança-se para baixo, porque é mais fácil e menos cansativo." Da parte da tarde, a operação vai ser mais minuciosa. O terreno será verificado palmo a palmo. Declives, fossas, zonas de arbustos e de rochas, o ribeiro.
Bruno Bonifácio, 29 anos, um dos elementos da Brigada de Montanha, abre a porta traseira do Land Rover. Uma estrutura com gavetas guarda toda a espécie de material de alpinismo. Outra área da caixa do jipe está reservada para os esquis, a maca-trenó e outro equipamento de neve. O veículo não tem qualquer semelhança com um carro de bombeiros normal. Os seus tripulantes também não são bombeiros normais. Tal como não são normais as situações que enfrentam.
"Uma vez, há quatro anos, um casal ia a andar e ele caiu num buraco. Estavam 17 graus negativos.Estava a nevar, escureceu, levantou-se um nevoeiro denso, não havia maneira de os tirar dali", conta Bruno. "Nós conseguimos chegar lá, enterrados na neve até à cintura."
Filipe Batista, também com 29 anos, o bombeiro mais graduado da Brigada de Montanha, recorda episódios em que as condições meteorológicas eram extremas, incomparáveis com o que acontece em qualquer outro ponto do país. "Uma vez encontrei um grupo, naquela estrada íngreme da Torre, que não era capaz de achar o caminho de volta. O nevoeiro era tão denso que me perguntaram: "Para que lado fica a Torre?" Não conseguiam perceber se iam a subir ou a descer."
Para poder actuar neste tipo de situações, Bruno, Filipe e os outros elementos da Brigada servem-se de equipamento específico, como esquis, alguns com pele de foca na base, para os percursos ascendentes, uma moto de neve, uma maca-trenó, que é rebocada pela moto, uma ambulância todo-o-terreno e diverso material de escalada. Além disso, frequentaram cursos especiais, com actualizações de três em três anos, de actuação em montanha, de escalada, de esqui, para além dos de Técnico de Emergência Pré-hospitalar e de Tripulante de Ambulância de Socorro.
Não é qualquer um que pode entrar para a Brigada de Montanha. São escolhidos de acordo com os seus conhecimentos, perícia e capacidades atléticas. Dos 13 elementos desta espécie de grupo de operações especiais de salvamento, 11 são homens na casa dos 20 anos,um é do sexo feminino e outro... tem 64 anos. Este último, porém, é o mais apto de todos. Foi ele que criou a Brigada e é ele que a comanda. Não há nenhuma operação em que não esteja presente. Trabalha dez horas por dia, não conhece fins-de-semana nem feriados. Está nos bombeiros desde os 14 anos, faz esqui desde os sete.
Antes de se dedicar a tempo inteiro à Associação dos Bombeiros Voluntários da Covilhã e à sua Brigada de Montanha, Flávio Martins foi professor de Educação Física. Especializou-se em desportos de montanha, embora nunca tenha conseguido introduzir essas modalidades nos cursos do ensino secundário. Foi membro do Clube Nacional de Montanhismo e foi com os grupos de esquiadores do clube, na Covilhã, que começou a ajudar os bombeiros nas operações de salvamento. Alcançavam os lugares mais inacessíveis, improvisavam macas e padiolas com os esquis, amarrados com cordas."Quando havia problemas com os esquiadores e os turistas, os bombeiros quase nunca conseguiam fazer nada, porque eram incapazes de chegar aos locais. Nós colaborávamos com eles." Os bombeiros, treinados na Escola Nacional de Bombeiros, em Sintra, não sabiam esquiar, nem enfrentar situações próprias de um ambiente de montanha, inexistentes no resto do país.
O primeiro par de esquis
Flávio tinha começado a esquiar muito cedo, numa época em que a actividade não era comum na região. Apesar de a natureza ser, aqui, muito diferente da do resto do território nacional, nunca houve na serra da Estrela uma tradição de desportos da neve. O que os autóctones conhecem é a pastorícia, não as pistas de esqui. Os senhores da serra sempre foram os pastores, que usam cajado, capote, cobertor de papa e botas nos pés, não esquis nem raquetes.
Flávio aprendeu a esquiar aos sete anos, com amigos mais velhos, alguns estrangeiros que já para cá vinham praticar desportos de Inverno. Comprou nessa altura um par de esquis em segunda mão, por 200 escudos, que pagou a prestações de 20 escudos por mês. Eram uns esquis de dois metros, de madeira pesada, fabricados por alguém da região, nada adequados aos pés de uma criança, e com os quais não era nada fácil dar as curvas. Mas Flávio foi aprendendo, criou um espírito de atleta, nunca fumou nem bebeu, e chegou a ganhar vários campeonatos em modalidades de montanha, em Portugal, Espanha e Andorra.
Quando entrou para os bombeiros, era o único que sabia esquiar. E continuou a ser nos anos seguintes, em que viajou para vários países, onde conheceu estâncias de montanha e estudou os dispositivos de segurança e técnicas de salvamento. Na serra da Estrela, entretanto, a prática do esqui e o turismo de montanha tornavam-se cada vez mais populares.
Em 1993, Flávio achou que só havia uma coisa a fazer: ensinar os bombeiros a esquiar. Enfrentou muitas resistências, de mentalidade e de burocracia, mas logrou criar a Brigada de Montanha, e formar os seus elementos. "Hoje, há seis indivíduos que descem comigo a todos os lugares", diz ele. Os outros ambicionam conseguir o mesmo. Há resgatadores, manobradores, "mas todos são capazes de fazer tudo, se for preciso".
No Verão, o grupo passa muitos dias a treinar, nas zonas mais baixas da serra. Mas no Inverno estão quase sempre na Torre. "O facto de estarmos lá dá segurança às pessoas", explica Flávio. E há sempre que fazer. "Quando há neve e vêm turistas, aos fins-de-semana, há sempre acidentes." Os acidentes normais das estâncias de Inverno, e outros, que são pouco comuns na Serra Nevada ou nos Alpes.
A ignorância dos turistas
"A maior parte dos acidentes ocorre com os trenós e os sacos de plástico", diz Flávio. Na sua maioria, os turistas da serra da Estrela não são propriamente esquiadores experientes. "Muitos não têm a noção." Quando deslizam de trenó ou saco de plástico, "andam de qualquer maneira, usam os calcanhares para travar, fazem fracturas do menisco ou na zona da articulação tibiotársica".
Nos Alpes, os acidentes são provocados pelas irregularidades das pistas, que os esquiadores percorrem a altas velocidades. Na serra da Estrela os socorristas tiveram de desenvolver uma especialidade que deriva da ignorância dos turistas.
"Nos Alpes, as pistas são fechadas e têm os seus próprios pisteiros, a quem as pessoas obedecem, não saindo dos recintos marcados", conta Flávio. "Aqui não. Os turistas fazem o que querem. Não respeitam as nossas advertências. Andam por todo o lado. Por isso é muito fácil perderem-se. Se lhes digo alguma coisa, respondem: "Eu vim para aqui para me divertir. A vida é minha, faço o que quiser." E gostam de se aventurar. Somos um povo de aventureiros."Não é fácil tomar conta desta espécie particular de turistas de Inverno. "A neve só é igual na cor", explica Flávio, que conhece os vários tipos de neve, as suas características e perigos, e as formas de lidar com ela. "Há a neve-pó, muito leve, em que se faz esqui enterrado até à cintura. Há a neve gelada, formada por grossos cristais, que forma uma placa dura de gelo. Há a neve da Primavera, que entra em estado de fusão, e onde só se pode esquiar até às 11 horas da manhã." Tudo coisas que a generalidade dos turistas não sabe. Mas os elementos da Brigada de Montanha dos bombeiros têm de saber.
"Não foi fácil explicar aos responsáveis que temos de estar adaptados ao meio ambiente", diz Flávio Martins. "Tal como no deserto se anda de camelo, o meio de locomoção específico na neve são os esquis."
Fonte: Público